Direito Constitucional na era da proporcionalidade (mas não na América?)

Resumo: nos EUA e na Europa, os direitos fundamentais têm raízes comuns. Todavia, os quadros dogmáticos e teóricos que presidiram ao seu desenvolvimento constitucional foi diverso nessas duas geografias. Uma das dimensões em que a diferença é mais patente é a que se reporta ao modo como é enfrentado o problema das colisões entre posições jurídicas subjetivas fundamentais e outros bens, interesses ou valores. Na Europa, foram desenvolvidos standards como o princípio da proporcionalidade, que a doutrina e a jurisprudência constitucionais americanas só muito residualmente reconhecem. Em contrapartida, nos EUA, competem entre si estratégias de balancing e/ou de aplicação de tiers of scrutiny. O presente ensaio pretende averiguar se o princípio da proporcionalidade pode ser adaptado aos quadros dogmáticos e teóricos dos EUA e, em caso afirmativo, se isso criaria um ambiente constitucional mais vantajoso para os direitos constitucionais.

 

Palavras-chave: colisões normativas, princípio da proporcionalidade, ponderação, tiers of scrutiny.

 

Introdução

No capítulo 1, apresentamos os traços fundamentais dos modelos americano e europeu de direitos constitucionais, na sua formação original. No capítulo 2, analisamos alguns aspetos evolutivos do modelo americano e a reconstrução integral do modelo europeu no pós II Guerra, salientando a propensão deste para a geração de um número superior de colisões normativas não resolúveis através de interpretação ou de aplicação de normas sobre colisões normativas. No capítulo 3, versamos as principais sequelas dos dois modelos, na sua expressão atual, no que toca ao modo como é estruturada a fiscalização judicial da atividade legislativa que enfrenta tais colisões. No capítulo 4, expomos as similitudes e as diferenças principais entre os testes americanos e o princípio da proporcionalidade em sentido moderno, com especial incidência na proporcionalidade clássica ou proibição do excesso. No capítulo 5, percorremos algumas condições de natureza institucional, doutrinal ou analítica necessárias para que a proporcionalidade pudesse incorporar o sistema constitucional de direitos americano. No capítulo 6, refletimos sobre se algum dos modelos, americano ou europeu, pode reivindicar vantagens comparativas sobre o outro no que se refere à satisfatória garantia dos direitos.

 

  1. Dois modelos

Embora a raiz filosófica dos direitos fundamentais seja idêntica nos EUA e na Europa, a vigência e titularidade de direitos naturais pelos indivíduos independentemente da sua positivação jurídica[1], o objetivo central desta positivação, quando ocorreu, divergiu. Na Europa, os direitos são reivindicados, conquistados revolucionariamente

e proclamados para fazer face ao poder real, sendo o órgão legislativo um aliado e instrumento para esse fim. Nos EUA, o conflito com o Parlamento britânico e o processo de independência tinham persuadido as antigas colónias e os Framers[1] da Constituição de que os direitos teriam de ser oponíveis não apenas ao executivo (o monarca ou quem fizesse as vezes dele), mas também ao legislativo. Em suma, a todos os órgãos do Governo, na aceção americana.

O modo como isto se refletiu na Constituição americana resume-se na chamada matriz “madisoniana[2] da distribuição de poderes entre o Governo e os particulares, assente na tensão entre dois direitos:  o direito republicano da maioria de decidir quais e como devem ser prosseguidos pelo Governo os interesses públicos; o direito dos indivíduos à preservação de um espaço individual de liberdade que a maioria e o Governo não podem invadir.

Um dos corolários desta visão, é que o governo escolhido pela maioria define e prossegue livremente fins em todos os domínios, sem necessidade de justificação[3], mesmo quando afeta interesses subjetivos, desde que estes não sejam tutelados por direitos positivados na Constituição. Por outro lado, admitiu-se que o Governo dispunha de poderes de polícia necessários à proteção da segurança, da saúde, da moral e do bem-estar do público em geral, que poderiam implicar limitações ao exercício de direitos constitucionais. Em qualquer dos casos, uma leitura rigorista do princípio da separação de poderes e a crença genuína na democracia representativa e na soberania do povo, conduz a que se encare esta atividade do legislador como essencialmente livre. Isso explica a persistente desconfiança de vastos setores em relação aos instrumentos de judicial review que propiciem intrusão naquele domínio livre do legislador, incluindo a generalidade dos que estudamos adiante.

No outro polo da referida tensão fica a garantia do espaço individual de liberdade por um número limitado de direitos, parcimoniosamente positivados na Constituição, e só nesta, com âmbito de proteção interpretado de forma estrita e unicamente oponíveis a um Estado visto como potencial ameaça àquela liberdade. De uma versão maximalista desta visão decorrem vários corolários.

Primeiro, direitos constitucionais indiscutíveis são aqueles que a Constituição limitadamente enuncia, desenvolvendo o Supreme Court uma jurisprudência de significativa austeridade no reconhecimento de novos direitos.

Segundo, a delimitação do respetivo âmbito de proteção, através da interpretação dos conceitos abertos, vagos e indeterminados usados na estatuição, obedece tendencialmente a uma visão restritiva.

Terceiro, tudo o que está coberto pelo âmbito de proteção do direito está-o de forma absoluta, perentória, categorial (rights as trumps[1]/[2]). Todas as limitações necessárias foram originalmente ponderadas e introduzidas pelos Framers, sendo desvendadas através da interpretação.

Quarto, do Estado requer-se abstenção e não ação positiva. Os direitos possuem estrutura essencialmente negativa, definindo um espaço de liberdade e autonomia individuais onde o Estado não possui competência para intervir. Salvo limitadas exceções[3], o Supreme Court não reconhece direitos sociais como direitos constitucionalmente protegidos. Por outro lado, não reconhece a existência de deveres positivos de proteção dos direitos dos particulares por parte do Estado[4]. Os direitos positivos são considerados um “erro”[5].

Quinto, os direitos aplicam-se exclusivamente na relação entre os particulares e o Estado (state action theory), rejeitando-se eficácia daqueles nas relações entre particulares.

Sexto, os direitos são imediatamente invocáveis perante os tribunais e diretamente aplicáveis por estes.

Estes corolários denotam que desde os prolegómenos da história constitucional americana os direitos constitucionais foram elevados a uma posição fortificada, escorada na coexistência de amarras suprapositivas e de amarras positivas numa constituição normativa, garantida pelo poder judicial.

Desde exatamente a mesma altura, o juiz constitucional confronta-se com linhas de força potencialmente antitéticas: por um lado, a muito disseminada desconfiança em relação a qualquer intervenção no âmbito do legislador; por outro lado, a pressão no sentido de fiscalizar judicialmente medidas legislativas que interferem em direitos (pressão intensificada por os direitos serem tendencialmente considerados absolutos e, portanto, teoricamente insuscetíveis de interferência legislativa).

Partindo de bases teóricas e filosóficas similares sobre o fundamento de direito natural dos direitos, os percursores liberais europeus conceberam sistemas que se afastaram significativamente do americano. Dependentes de circunstâncias sociais e políticas dispares, também apartados foram os caminhos seguidos.

Na Inglaterra, os direitos individuais resultaram de sucessão e sobreposição de paradigmas: accient common law, contratualização, supremacia parlamentar.

A primeira é o simultaneamente difuso e consistente resultado de adquiridos históricos, com raízes na old law do período anglo-saxónico, confirmada pelos reis normandos, parcialmente convertida em fundamental law aplicável a todos, sem distinção, pelos tribunais, indisponível pelo próprio rei[1]. O mais conhecido e reiterado componente é do writ of habeas corpus, acolhido pela Magna Carta em 1215, sucessivamente confirmado e reafirmado em várias ocasiões (1225, 1297, 1679). O mais significativo – porém, controverso –  pronunciamento jurisdicional é o do caso Dr Bonham, de 1610, que admite a prevalência da common law sobre atos do parlamento[1]. Este quadro histórico de garantia de direitos não resistiria ao processo de formação da supremacia parlamentar. Algumas décadas depois vai ser superado e secundarizado pelo princípio da soberania e supremacia parlamentar, particularmente a partir do final do século XVII, com e depois da Glorious Revolution. O Parlamento impõe ao Rei o definitivo reconhecimento das liberdades naturais, é o seu garante, mas está legitimado para as limitar, não lhe sendo aquelas oponíveis[2].  A situação assim permaneceu até há algumas décadas, quando a vinculação do Reino Unido ao sistema internacional europeu de direitos humanos suscitou alterações profundas.

Em França e nos Estados europeus que, com maiores ou menores adaptações, adotariam as linhas do ideário revolucionário liberal francês, os direitos foram conquista revolucionária face a monarcas absolutos. Superado o absolutismo, visava-se introduzir profundas alterações na antiga ordem social e no enquadramento jurídico e institucional que a conformava. Nesse contexto, a função dos direitos – proclamados em constituição ou em declaração solene – não era primacialmente estabelecer espaços de liberdade perante o (novo) Poder, através de direitos subjetivos de defesa, mas clarear um conjunto de princípios estruturais da nova ordem social, mormente de liberdade e igualdade, que deveriam enformar a ordem jurídica. O parlamento, expressão da soberania do povo, mais do que ameaça potencial aos direitos ou de agente que deveria manter uma atitude de abstenção em relação a eles, era o veículo da irradiação desses direitos, através da lei, para os vários domínios da ordem jurídica[3]. No desempenho dessa função, prescindia-se em boa medida dos tribunais, aliás vistos como uma reminiscência anacrónica do antigo regime e do sistema de privilégios que se pretendia eliminar.  A função de barreira negativa em relação ao poder executivo (subordinado ao rei, se mantida a instituição monárquica) não seria completamente irrelevante, mas era deficitariamente cumprida devido à feição principial, proclamatória, apelante, programática, das cartas de direitos. Nos EUA, vislumbramos, já então, direitos negativos absolutos, oponíveis ao governo – legislador incluído -, solidamente ancorados numa constituição normativa protegida por juízes; nesta parte da Europa, encontramos princípios, apelos e proclamações, endereçadas ao legislador ordinário, por ele interpretáveis e só garantidos pela vigilância de um órgão político, o parlamento.

Na Alemanha, salvo o fugaz interregno de 1848-1849 (Constituição de Frankfurt), os direitos mais relevantes para a burguesia liberal são consagrados nas Constituições dos Estados produzidas, em contexto de monarquias mais ou menos limitadas, depois do Congresso de Viena (1814-15) ou na lei. Na Constituição do Império alemão (dita Constituição de Bismark), de 16 de abril de 1871, não constava um catálogo de direitos. Bismark entendia que, figurando esses direitos do ordenamento constitucional e legislativo dos Estados, não era necessário um catálogo na Constituição do Reich. Nesse contexto, o debate sobre o valor dos direitos fundamentais, designadamente se constituíam mero limite à atuação do executivo (Laband) ou verdadeiros direitos subjetivos garantidos pelos tribunais ordinários (Jellinek), entre outras variantes, não era de sentido único. Mesmo nesta segunda perspetiva os direitos fundamentais não decorriam de qualquer reserva natural inacessível ao Estado, não eram oponíveis ao legislador, antes tinham o conteúdo que a lei parlamentar definisse quase livremente. Sendo menos avançada do que a da tradição revolucionária francesa, a solução cumpria a função desejada: ainda que dependentes da lei, os direitos consolidavam os adquiridos burgueses e orientavam novos progressos do direito ordinário e da Administração no sentido desejado pela burguesia. Só depois desta função objetiva estar satisfatoriamente garantida, passaria a predominar a sua vertente negativa, de direitos de defesa[1]. A situação poderia ter sofrido um abanão com a malograda Constituição de Weimar (1919). Mas, não obstante os seus traços de modernidade, que incluíram um extenso catálogo de direitos sociais e até a eficácia de alguns direitos nas relações de emprego[2], no essencial continuariam a prevalecer, do ponto de vista da leitura doutrinal e, enquanto foi possível, da prática, os quadros da tradição liberal europeia. A doutrina maioritária fincou-se na natureza dos direitos fundamentais como direitos subjetivos públicos, mas não perante o legislador.

Em nenhuma das situações se pode falar de modelos de direitos providos da normatividade que os americanos lhes garantiram.

Nos EUA, os traços originais veriam a sua radicalidade sofrer um processo gradual de erosão, mais acentuado a partir de meados do século passado, sem, todavia, beliscar a identidade arquitetónica[1]. Na Europa, após o final da II Guerra, começaria a emergir um modelo próprio, primeiramente ensaiado em alguns ordenamentos constitucionais, gradualmente propagado a outros e parcialmente clonado ao nível internacional. Embora não tenha substituído por completo e ao mesmo ritmo o modelo clássico de alguns Estados, designá-lo-emos de modelo europeu (em detrimento da designação, sugerida na literatura, de modelo do constitucionalismo global[2]), em contraposição ao modelo americano.

  1. Linhas evolutivas do modelo americano

Nos EUA, o modelo alegadamente arquitetado logo em 1787, gradualmente atualizado e integrado pela jurisprudência e pela doutrina, sofreu apenas os ajustamentos que a dinâmica evolutiva da realidade constitucional exigiu. Um modelo assistido por uma normatividade e garantias superlativas e adaptado ao excecionalismo americano[1] não requer mais do que isso. Em todo o caso, mesmo que localizados, registam-se episódios com potencial transformativo, como o da pressão dos direitos civis, especialmente na década de 1960. Focaremos de imediato a reinvenção do substantive due process of law e o debate sobre a revisão da doutrina da state action. Mas a evolução doutrinal mais vincada gravita em torno do balancing como operação de deliberação prática constitucional e dos tiers of scrutiny, tratados autonomamente mais adiante.

 

2.1. Reinvenção do substantive due process of law

Após a Guerra Civil, o Supreme Court, ancorado na história e na antiga doutrina dos direitos naturais refletida nas declarações de direitos pré-independência, interpretou o princípio do due process of law das 5.ª[1] e 14.ª[2] emendas (ainda sem falar de substantive due process, conceito que só surgiria em meados do século XX) como um fundamento para limitar os poderes do governo sobre a esfera privada. Uma das mais precoces e famosas decorrências dessa doutrina foi Lochner v. New York[3]. No caso, a aplicação do due process visava a proteção da liberdade contratual e do direito de propriedade contra a interferência desrazoável e arbitrária do governo no exercício dos seus (vagos e indeterminados, dizia o Tribunal) poderes de polícia.

A doutrina de Lochner seria revertida no final dos anos 1930, para o que contribuiria a conjugação de vários fatores: o seu perfil anti-progressista, calcificador de liberdades económicas no interesse de grupos sociais poderosos; a decadência da doutrina dos direitos naturais; o excesso de intrusão no domínio do legislador; a hostilidade de nomes influentes como Wendell Holmes e outros; o crescente domínio do positivismo; e a imposição rooseveltiana do New Deal. Durante décadas, houve incerteza sobre o rumo do due process na dimensão substantiva. Os Tribunais Warren e Burger reinventaram-no, colocando-o ao serviço de uma jurisprudência pró-direitos civis e autonomia individual, designadamente na esfera íntima privada, não se conseguindo eximir, porém, da suspeita de que procediam a uma reconversão e atualização de alguns traços estruturais de Lochner ao serviço de outras opções políticas. O substantive due process of law passou a ser base normativa de direitos não expressamente fundados na Constituição. Precipitações dessa jurisprudência são Griswold v. Connecticut (1965), Eisenstadt v. Baird (1972) e Roe v. Wade (1973), que reconheceram direitos que vão do uso de contracetivos, ao aborto. Mais recentemente, foi nele que o Supreme Court fundou a posição sobre o direito ao casamento de pessoas do mesmo sexo. Na Europa, a resposta à erupção de novos direitos, não enunciados na Constituição mas reivindicados por uma sociedade mais complexa, desafiadora da persistência de apenas um número limitado de direitos, passa por quadros conceptuais e doutrinais como a consagração de cláusulas abertas de direitos, o recurso ao princípio da dignidade humana, ao direito geral de liberdade ou ao desenvolvimento da personalidade, a interpretações extensiva da previsão. Havendo nos EUA desafios substantivamente coincidentes, o recurso ao substantive due process é uma fórmula muito mais contida de os enfrentar.

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